sábado, 9 de novembro de 2013




Não há dúvida de que, entre todos os dealers de São Paulo, nenhum é mais temido do que Carlo, o Coveiro. Por isso não fico surpreso quando, num sábado à tarde no Paradiso, ouço um parceiro chamado Boca Murcha reclamando bem alto do azar e esperneando como uma formiga no azeite. Estou a duas mesas de distância, então desconheço os detalhes da ação, mas parece que o velho Boca Murcha pegou uma quadra contra o seu full de reis e, algumas mãos depois, acertou um flush nuts só para encontrar um parceiro com straight flush.


Bem, apesar de sentir pena do velho Boca Murcha, que considero um cidadão realmente correto, não posso dizer que me causou admiração ouvir essas bad beats. Digo isso porque é bem sabido entre todos os frequentadores do Paradiso que Carlo, o Coveiro, já matou tanto parceiro quanto a catapora. Ou até mais, por sinal.

Creio que ele nunca foi de fato um coveiro por profissão, e eu diria que as odds são de 100 para 1 de que ele nunca será. Mas a facilidade com a qual o nosso querido dealer enterra a parceirada deu a ele o apelido. E se alguém acha que não é merecido, é porque nunca jogou em sua mesa, pois não conheço um parceiro sequer que nunca precisou pedir algum tomate emprestado para colocar gasolina no tanque depois de uma sessão na mesa de Carlo, o Coveiro.

Um negócio curioso é que, apesar de aterrorizante com as cartas na mão, ele é uma figura realmente agradável. Sempre que quebra alguém, o que não acontece pouco, o Coveiro tem alguma coisa bacana para dizer, como “O baralho tá te castigando mesmo hoje, filho, mas isso é sinal que você vai cravar alguma princesinha mais tarde”. Ele chama todo mundo de filho, o que é reconfortante quando você toma uma daquelas suas pancadas de 3 mil na orelha.

Carlo, o Coveiro, tem quase 2 metros de altura, e deve estar uns 25 quilos acima do peso ideal, e fala com uma voz de veludo. Ninguém sabe ao certo a sua idade, mas eu chutaria 70 e tantos, o que torna ainda mais impressionante a sua habilidade de manusear o baralho. A única família que ele possui é a parceirada, então o Coveiro fica o tempo inteiro no Paradiso, distribuindo carta ou jogando tranca quando está de folga. Ele só deixa o clube para dormir, e isso quando não se ajeita no próprio sofá do lobby.

Enfim, naquela tarde de sábado, em que o velho Boca Murcha rebolava sem bambolê, quem entra subitamente pela porta do Paradiso senão o Romerito, o famoso jogador de futebol. O Romerito tem só 31 anos e já se aposentou dos campos. Todo mundo achava dez anos atrás que ele seria um grande craque, tanto que chegou a jogar na Europa, mas o Romerito é pançudo e gosta de uma farra. Aí nenhum clube queria mais essa bagunça, e como ele estava de bolso forrado, mandou todo mundo para o diabo e largou o futebol.


Bem, alguns artistas já passaram pelo Paradiso antes, mas essa é a primeira vez que um boleiro proeminente aparece por lá. Há uma grande exaltação entre a parceirada, então, ainda mais pelo fato de o Romerito já chegar na casa mostrando uma velocidade fenomenal. “Qual é o jogo mais caro do clube?”, o Romerito diz. “Porque hoje quero um placar de pelo menos seis pernas, ou quem sabe sete!”

A mesa mais cara até o momento é um 25 no botão, onde definitivamente é impossível fazer um placar de seis pernas, quem dirá sete. Então o Padrinho, que é o dono do Paradiso e quer agradar a visita ilustre, abre um Omaha de 100/200, com 50 mil de frente. E que dealer é escalado para mesa senão Carlo, o Coveiro.

Não é qualquer parceiro que tem tomate para encarar essa proposição de 50 mil, então o Padrinho faz algumas ligações e leva quase uma hora para o quórum ser formado. A mesa fica assim: o Romerito, o André Mameluco, que veio correndo da praia atrás da forra, o Bruno Amado, dono de uma rede de fast food, o General, que já estava no 25 no botão, o Frederico Faria, um empresário da noite, e o próprio Padrinho.

Bem, eu certamente não tenho bala para engatar num jogo desses, mas eles me fascinam, então ali da mesa pequena fico de olho na ação. Não posso deixar de reparar no primeiro all in da mesa e encosto nela para assistir: o Frederico Faria empurra tudo no pré-flop com par de ases na mão, e o Romerito paga com dez, valete, dama e rei. O bom e velho coin flip.

Quando o Coveiro abre dez, valete e dama no flop, a situação azeda para o Frederico Faria. O Romerito agora tem três pares e duas pontas, está por cima da carne seca. Mas o que bate no turn e river senão uma dupla de setes, que dá dois pares de ases ao Faria e tira um pote de R$ 110 mil do Romerito.

A partir dessa mão, a missão só vai piorando para o boleiro: bad beat atrás de outra. Se alguém me dissesse, até a semana passada, que é possível perder um pote com trinca nuts e nut flush draw no flop, eu diria que esse parceiro está louco e receitaria um largo Gardenal para ele. Pois não vi o Romerito perder logo três mãos assim?

Agora são quase quatro da manhã e, como entrei num chorrilho e fiz uma forrinha de 2 mil na mesa pequena, um placar realmente honesto, decido que preciso dormir um pouco antes de devolver esse tomate para a parceirada. Mas antes de ir embora dou uma última passada na mesa cara, em que o Romerito deve estar com um vale, segundo as minhas contas, de pelos menos 300 mil.

Durmo algumas horas e, ao acordar, resolvo fazer algum exercício, porque estou certamente preocupado com a barriga que está crescendo em mim. Então encosto ali no Esquilo’s e engato em algumas partidinhas de bilhar. Aí quem me liga senão o Pedrinho Mídia, o jornalista. “Você já está sabendo?”, o Pedrinho Mídia pergunta para mim. Apesar de eu saber de muita coisa, suspeito que nesse caso específico não, então respondo que negativo. “Sabe aquele jogo caro de ontem? Rebolou, eles estão jogando até agora. Ouvi dizer que o Romerito entrou num ferro de sete perninhas, é mole?”


“Você está aí no Paradiso?”, eu pergunto. “Sim”, o Pedrinho Mídia responde, “mas como o jogo esquentou e subiu para 500/1000, eles foram para uma salinha fechada. Ninguém sabe exatamente como está o placar agora, mas a história que circula é que Carlo, o Coveiro, está fazendo o maior enterro da sua carreira.”

Agradeço o Pedrinho Mídia pela informação, mas aviso que preciso desligar porque estou fazendo esporte, e meu parceiro já está ficando injuriado com minha demora para dar a tacada.

Na semana seguinte, ouço muitas histórias diferentes do que se passou no jogo. Uns dizem que o Romerito perdeu um largo espigão, outros falam que ele se recuperou em cima do General, e há ainda aqueles que juram que o ferro dele bateu nas oito pernas. Mas o que aconteceu de verdade ali, só quem estava dentro da salinha fechada sabe.

O único fato indiscutível é que, três dias depois de entrar pela porta do Paradiso, o Romerito aparecia na capa de todos os jornais anunciando a sua volta para o futebol. Ele dizia que estava com saudade do jogo, mas eu fico imaginando se o verdadeiro motivo não foi o capote naquele Omaha do Padrinho. E também me pergunto se a paixão de Carlo, o Coveiro, pelo Operário FC, a única coisa nesse mundo que ele gosta mais do que as cartas, e que perdeu a final do mundial num pênalti mal batido do Romerito, poderia ter influenciado aquele ferro.



Sobre o autor
Pedro Nogueira
Após algumas sessões de regressão, este jornalista descobriu que viveu na Nova York dos anos 20 em sua vida anterior. Sua única preocupação era saber a linha de frente da próxima corrida de cavalos e o endereço de um salão de bilhar para passar as noites frias. Ele também é editor-chefe do sitewww.elhombre.com.br
Twitter: @pedronogueira87

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